quarta-feira, setembro 29, 2010

“Sheila”, “Maria”, “Rosa” e eu

_ Há muita mulhé bunita em Portugau, filho. Aposto qui você vai encontrá a minina certa aqui.
A conversa decorria no maior Centro de Saúde da cidade, à porta da especialidade de Oftalmologia. Bruno tem 6 anos e começou a frequentar a escola em Portugal há 15 dias. Vê como uma águia, mas precisa de corrigir a vista. A mãe, brasileira, mineira, mestiça, gasta pelos anos e por uma trombose numa idade jovem, aturava com paciência as perguntas inesgotáveis do menino.
_ Ele deixou uma lista enorrme di mininas no Brasil. Prometeu pra todais que ais trazia prá Pórrtugau.
_ Só prometi prá uma, viu! – Ralhou, genuinamente zangado, o menino. A mãe insistiu. Havia muitas mulheres bonitas em Portugal…
_ Ou então, você vai buscá sua mulher nu Brasiu, iguau à seu pai.
“Sheila” (ou “Gislene” ou “Cassandra” ou o que for) casou com um português que a foi “buscar ao Brasil”. Desse amor nasceram três filhos. O mais velho já andava na Universidade quando ela teve a trombose que a debilitou irremediavelmente. Com corpo e mente ainda em forma, “Sheila” ficou com o lado esquerdo totalmente afectado. Agora coxeia e tem uma mão defeituosa.
_ Ele acabou não si interessando mais porr mim. – Revelou mais à frente na conversa, em tom neutro e adulto, quando explicava a razão da sua “deficiência”, como lhe chama, e como voltou para o Brasil com um menino de um ano e meio para começar a vida novamente sozinha, deixando dois filhos mais crescidos com os avós paternos, por quererem continuar a estudar em Portugal. – Homem é mesmo assim, num é? Gosta de você quando você é jovem e bonita. Doença não entra na equação.
“Maria” (ou “Gertrudes” ou “Conceição”), 73 anos, portuguesa, tesa, católica, mulher do campo, que trouxe o marido à consulta porque “ele nem queixar-se sabe, tenho de ser eu a fazer tudo por ele… mas é a mim que ele me chama analfabeta… é que eu não sei ler, sabe?” – tinha-me confessado meia hora antes, na fila do atendimento – aproveita para suspirar. Sentada directamente à frente de “Sheila”, chega-se à frente na cadeira e sussurra como se o marido não a pudesse ouvir:
_ É verdade, é. Uma vez senti-me mal durante a noite. Ele acordou, percebeu, mas nem se levantou da cama. – O marido, se ouviu, não o demonstrou.
Bruno continuou a fazer tropelias. Sempre correcto e educado, demonstrava uma força de carácter e uma inteligência invulgares para na idade. Mostrou-se chocado quando a mãe lhe revelou que era tripeiro (“Você e seu irrmão Filipe nasceram no Porrto, sim. Nasceu no Porrto, é tripêro!”). O menino não gostou do termo.
_ Eu sou porrtuguês, mais num sou tripêro, não!
Mas gosta dos Dragões e do hino português, que cantava todos os dias na escola, no Brasil, e que passavam propositadamente por ele “ser estrangeiro” logo a seguir ao hino brasileiro, que também sabe de cor. Cantou, com esmero, "A Portuguesa" para todos os presentes ouvirem.
“Rosa” (ou “Júlia” ou “Filomena”), na casa dos 50, ainda bonita, sóbria, calada, sentou-se já a meio da complicada história de vida da brasileira. Emocionou-se a ver o menino cantar o hino e continuou a olhá-lo com carinho, embora pouco tenha participado na conversa.
“Sheila” contou como foi difícil descobrir que estava grávida poucos meses depois da sua trombose. Como chorou com o veredicto de que o menino poderia nascer “com problemas”. Como, com o fim do casamento, foi para o Brasil com um filho de ano e meio nos braços e, “mesmo doentchi, consigui providenciá para eles”. “Rosa” quis saber “porque voltou”.
_ Meus sogros. Eles me trouxeram dgi volta. Nunca se conformaram que eu tivesse ido.
_ Bons sogros. Tem uns bons sogros – Disse “Rosa” num tom sincero e triste.
_ Eles sabem que o filho num mi merece. Eu e o pai deles vivemos na mesma casa, mas em andares dgiferentes. Eu num com meu filhos e ele noutro com os pais dele. Falamos, para o bem dos meninos, mas nada mais. Mas os avós… Meus filhos são loucos pelos avós!
Como num filme, em que o actor principal dá a deixa certa, um homem encorpado, de cabelo branco, distinto, chegou à pequena sala de espera. Bruno saltou-lhe para o pescoço com um grito e “Sheila” apresentou-o com familiaridade e um sorriso:
- Aí está, o avô. Meu sogro.
O tratamento entre os três era respeitoso e carinhoso. O menino “atacou”o avô com brincadeiras atrevidas e o velhote respondeu com uma paciência infinita. “Sheila” brincou, dizendo que agora que o sogro tinha chegado podia descansar das perguntas constantes do filho. “Maria” deliciava-se com a paciência e o carinho do ancião, perante a passividade do marido. E “Rosa” - vi eu - olhava a cena discretamente, mas com os olhos húmidos de lágrimas...
E eu, sentada, à espera da consulta de Oftalmologia no maior Centro de Saúde da cidade, cansada de uma noite mal dormida e dormente pela luz jovem do sol que espreitava pela janela e pela voz constante do doce Bruno, que penteava agora o avô com um carrinho de brincar, pensei de forma fugidia... que outras mágoas esconderiam aquelas mulheres…?

1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

O que se pode ver enquanto se espera por uma consulta.
Gostei imenso do teu texto. É uma excelente crónica do quotidiano.
Querida amiga, boa semana.
Beijos.