Naquela Terça-feira, o plano primordial era encontrar o Pontifico Instituto de Música Sacra. O meu gajo estava a trabalhar para o Mestrado em Música, que girava em torno do compositor português Manuel Faria. Ora, Manuel Faria, nos tempo idos, estudou em Roma… no Pontifico Instituto de Música Sacra!
Cheios de coragem, enfrentámos o calor abrasador e dispusemo-nos a fazer uma caminhada logo de manhã. O meu gajo tinha na cabeça o mapa do local exacto onde a sede do instituto se encontrava sabíamos que íamos ter de andar um bom pedaço, já fora do centro da cidade eterna.
Foi fácil encontrar o Instituto. No entanto, como estava em período de pausa lectiva, os enormes portões estavam fechados a sete chaves. As poucas pessoas que foram aparecendo, não tinham autoridade para nos deixar entrar e, portanto, restou-nos deambular um pouco por ali e fotografar o edifício de todos os ângulos possíveis debaixo de um sol opressivo. Ao fim de uma hora e qualquer coisa, a escorrer suor e sem coragem para fazer o caminho de volta, a pé, até à estação de metro, aguardámos um autocarro em sofrimento. A custo, encontrámos o caminho de volta “à cidade”.
Foi a São Pedro que nos dirigimos. Sempre São Pedro. Ainda não tínhamos visto as criptas nem a cúpula e, definitivamente, se há sítio que vale a pena explorar em Roma é aquela fabulosa Basílica.
Comprámos bilhetes para as criptas e, solenemente, fizemos o curto caminho até às grutas do Vaticano. Lá em baixo, cheirava a suor e humidade. Mas à medida que os túmulos e outros vestígios do Cristianismo antigo apareciam, a sensação de desconforto ia dando lugar a admiração. Um após outros, sem ordem cronológica definida, mas bem identificados com a foto e descrição do “reinado” do seu habitante, as criptas iam desfilando em frente aos nossos olhos, algumas fabulosas, algumas despidas e simples.
João Paulo II. Dizem que será canonizado em breve. Não sou católica. Não rezo junto de túmulos por acreditar que falar com os mortos, onde quer que se sinta a falta deles, é uma solução mais apropriada. Mas João Paulo II estava lá. Não o túmulo – em pedra branca, sóbrio, com linhas duras e simples e três rosas em metal precioso depositadas na pedra nua, que, embora fossem deslumbrantes, pareciam não pertencer àquele lugar humilde, ornamentado de origem apenas com uma cruz de metal austera. O túmulo servia para o achar digno de mais. Era João Paulo II estava lá. Sentia-se nos arrepios da pele.
Não sou católica. Não rezo. E mesmo assim ali parei, como a multidão que, de olhos húmidos, murmurava suplícios e lhe atirava flores e bilhetes perante o olhar inflexível dos guardas. Era o único túmulo com direito a vigilância. Nenhum outro a pedia. Nenhum outro tinha uma multidão à frente a rezar de olhos húmidos. Nenhum outro se sentia assim. Ali fiquei, tentada a contrariar o sinal de “Fotos Proibidas”, mais para guardar a ideia do momento do que a sua imagem. Fiquei lá, também eu de olhos húmidos, a rezar sem o saber fazer e sem saber porquê. Uma oração por João Paulo II. …Tenho a certeza que será canonizado em breve.
Comprámos, depois, bilhetes para visitar a cúpula da Basílica de São Pedro. “Tens a certeza que consegues ir lá?”, perguntava o meu gajo, conhecedor da ansiedade que me surge nas grandes alturas. “Não sei.” – Dizia-lhe. – “Mas vou tentar.”
Começámos a subir. Primeiro de elevador até ao topo da igreja, bem atrás dos apóstolos que se vêem no topo da fachada a partir da Praça de São Pedro, depois por escada, até ao interior da cúpula. No pátio por cima da igreja, tirámos fotos á Capela Sistina vista de fora, discreta, no seu tijolinho castanho. Dentro da cúpula, observámos a nave da igreja, o baldaquino visto de cima e deslumbrámo-nos com a folha de ouro bem à frente dos nossos olhos. Causava vertigens olhar lá de cima…
Eu continuei a subir. O meu gajo, nauseado, ficou-se pelo interior da cúpula.
Continuei a subir, cheia de coragem e confiança. Mas, á medida que o caminho se tornava mais tortuoso e menos amplo, a minha bravura foi-se desvanecendo. Em breve, era eu que seguir nauseada atrás e à frente de uma fila interminável de pessoas. Escadas tortas e altas, corredores inclinados, túneis em escadaria de caracol. MEDO!
Várias vezes tentei parar. Mas não havia como. Se parasse, ninguém mais passava. Lutando contra o pânico que me trazia a sensação de estar fechada, no escuro, a centenas de metros do chão firme e a ser “empurrada” para a frente por dezenas de pessoas fui avançando com passos inseguros. Falhei ao encontrar mais uma escada em caracol mais estreia, mais escura, mais íngreme e com uma corda no meio que ajudava a subida. Recuei. Enfiei-me no único espaço livre ao lado a boca escura da passagem. Não saber onde estava, se faltava muito ou pouco, se o restante caminho ia ser mais fácil ou mais difícil, ou se ia haver chão debaixo dos pés suficiente para albergar toda aquela gente estava a deixar-me fraca.
Um grupo de rapazes parou atrás de mim, gentilmente dando-me passagem. Falaram-me em italiano. Em inglês meio soluçado tentei explicar que talvez não fosse mais longe. “I’m not sure I can do this!” – Disse-lhes. Com um ar brincalhão, todos puseram uma cara triste. E se uns passaram por mim escada acima, outros ficaram para trás e, de mãos esticadas para o escuro, insistiram para que eu continuasse. Respirei fundo e subi.
Subi. Subi. Subi. E cheguei ao topo. Antes de sair para a paisagem, agradeci a quem me obrigou a subir... Depois, já com a luz do dia a inundar-me os sentidos, fiquei, a tremer, encostada à parede interior da cúpula. Estive lá até a respiração se tornar menos ofegante. Não sei se era cansaço da subida ou puro pânico, eu estava de rastos!
Não parei de tremer. A altura. A quantidade de gente enfiada num varandim minúsculo que circundava o topo da velha cúpula. O movimento constante das pessoas. Estava tonta. De olhos fechados, lá recuperei a compostura e, passados uns minutos, tive coragem de me aproximar da grade do varandim minúsculo.
A paisagem era deslumbrante. Roma aos nossos pés. O Tibre. O Monumento Victorio Emanuelle. A Praça de São Pedro com as formigas que por lá deambulavam. Que espectáculo incrível deve ser vê-la cheia dali!
Fotografei. Filmei. Admirei.
Quando seria normal eu ir embora?
As pessoas circulavam em torno da cúpula de máquinas na mão. Famílias inteiras sorriam para a câmara. Miúdos de 5 ou 6 anos inclinavam-se sobre a frágil estrutura de metal. E eu virava a cara para não ver. Concentrava-me na paisagem. Tremia ainda. Ganhei coragem e pedi a um francês, pai de família, que me tirasse uma foto com a praça de São Pedro lá em baixo. Na posse da prova de que tinha estado no topo do mundo, corri pelas escadas abaixo à procura dos braços do meu gajo! Descer foi infinitamente mais fácil. Já conhecia os caminhos tortuosos e corria em direcção ao chão firme.
Encontrei-me com o meu gajo junto aos apóstolos, no terraço da Igreja. Fotografámos as costas de pedra dos homens santos e descemos até à nave. Voltámos a deslumbrar-nos com o interior da Basílica de São Pedro. E depois com a Praça de são Pedro.
Exausta, decidi que ainda conseguia ir até Transtevere (traduzindo, o nome do bairro quer dizer “para além do Tibre” e, atravessando o rio Tibre, fica do lado oposto ao Vaticano). Ansiava por esse passeio. Desconfiava que era no bairro daqueles que se auto-intitulam “os romanos autênticos” que ia encontrar a Itália dos filmes e não me enganei.
Plantas a cair das janelas, scooters encostadas às paredes, raios de sol a banharem as ruas empedradas. Transdevere é doce, boémio e melancólico. É um cenário de um filme antigo. A alguns pode impressionar um certa pobreza que paira nas ruas que não vêm no mapa. Mas é também fora das ruas assinaladas nos mapas que está a autêntica Roma. Aliás, em Transteve não há nada para ver. Não há grandes monumentos com nomes conhecidos (exceptuando Santa Maria de Transtevere onde não chegámos air), nem piazzas memoráveis. São as ruas, é o próprio bairro que vale a pena sentir. Delicioso.
Passeámos pelo bairro mais romano de Roma até o cansaço nos vencer. Depois, atravessámos a Ponte Cestio até à Isola Tiberina, onde fotografámos o Convento de São Bartolomeo, e atravessámos novamente o Tibre, pela Ponte Fabricio, para Lungotevere de Cenci, onde queríamos ver a Sinagoga de Roma.
Depois de um passeio arrastado em torno da Sinagoga, decidimos arrastar-nos até Teatro Marcello – o teatro inaugurado por Augusto em 12 a.C, com uma que construção muito semelhante ao Coliseu e que ao longo dos séculos chegou a ser transformado por Baldassare Peruzzi em residência da família Orsini - onde esperávamos encontrar um bom espectáculo de música clássica, que faz as delícias do meu gajo. E havia, efectivamente um espectáculo. No entanto, a olhar para as pessoas fantásticas que desciam a rampa até ao local do concerto, esmorecemos e desistimos. Tínhamos meia hora para jantar e estávamos imundos e exaustos. Não havia ânimo para uma hora de piano. Eu, sem dúvida, teria adormecido nos primeiros dois minutos da performance.
Jantámos uma deliciosa lasagna na Piazza del Risorgimento a muito custo – o ar quente de Roma estava sufocante depois de terem alcatroado toda a zona – e voltámos ao hotel, onde desmaiámos de cansaço.