quarta-feira, novembro 07, 2007

Boa tarde, doutora

_Bom tarde, doutora. – disse.
Não lhe liguei. Fosse pelo cansaço ou pelo hábito de ouvir saudações corteses que nada significam, nem a ouvi.
No dia seguinte, novamente me calha a mim entregar a chave do escritório. Com um sorriso, voltei a ouvir o “Então, tenha uma boa tarde, doutora”.
Perguntei-me, então, há quanto tempo eu a ouvia sem a ouvir realmente. E descobri, enterrado na minha memória, o seu constante sorriso em diversas ocasiões. Era uma pessoa da confiança da administração. Fazia já parte da estrutura daquele edifício onde entram e saem doutores - reais e imaginários - a toda a hora.
Supôs, por isso, que a sua saudação era já uma “gravação” da memória e que nada significava.
Mas, todos os dias, aquela voz submissa me assombrava a caminho da casa.
_Boa tarde, doutora. - Ouvia-a na minha mente a outras horas do dia. – Doutora!
Numa dessas tardes perdidas no meio de tantas outras, ia já preparada para a ouvir.
Coloquei a chave em cima do balcão da recepção e olhei bem para ela. É mais velha do que eu, trabalha lá há mais tempo do que eu e tem a confiança daquelas pessoas todas.
_Boa tarde, doutora. - Disse previsivelmente.
_Não me chame doutora. – Disparei com convicção – Não é preciso. Sou muito jovem para ouvir esse título tão pesado. – Sorri-lhe. Coloquei-lhe a mão num ombro. Disse-lhe para me chamar pelo meu nome próprio.
Arrependi-me logo.
O sorriso esmoreceu-lhe, pôs os olhos no chão e eu li-lhe o pensamento: “Pronto, mais uma falsa armada em gaja porreira!”
Deixei a minha mão escorregar-lhe do ombro e também eu pus os olhos no chão.
_Boa tarde. – Disse-lhe timidamente.
E fugi dali.
Agora temo-lhe o olhar, porque sei que ao ouvir-lhe a voz simpática vou sempre adivinhar-lhe os pensamentos.

14 comentários:

Anónimo disse...

Adoro, de facto, a tua escrita e os teus sentimentos GK! Só tu me sabes exprimir tão bem ;)

Bom, eu estou a passar mais ou menos pelo mesmo neste momento. A diferença é que tu - como boa observadora que és - reparaste em alguém, pensaste que pudesses ter mais contacto com ela, mas foi ela que recusou esse contacto. Não tens de te recriminar pelas tuas atitudes ;)

Quanto a mim, assusta-me ser apresentada como doutora, mas, caramba, neste país de brandos costumes e tal como tu dizes "onde entram e saem doutores - reais e imaginários - a toda a hora"... e se passei quase 30 anos em estabelecimentos de ensino, porque não? - Não, não sou assim tão burra, nem tão indecisa, apenas acumulei conhecimentos e alguns graus academicos - ;)

Além do mais, quem nos chama de doutoras, acho que gosta de pensar que está a falar com alguém que percebe, que se formou, que é educado. Afinal, quem não quer estar entre os melhores? É pena, no entanto, essas permissas na maioria das vezes não corresponderem totalmente à realidade sobre a qualidade civica e humana de cada doutor/a.

A minha profissão está inserida no rol das novas profissões, ainda andamos a fazer notar a necessidade, objectivos e competências dela na sociedade contemporanea. Portanto, quem sabe se este não será um indicador de que já se está a notar o nosso trabalho e porque não, uma forma distrorcida de lhe mostrar respeito?

Uma vez ouvi de uma pessoa que admiro muito:

"Ser doutor está nas acções e atitudes de cada um, é isso que é ser doutor".
Parece-me bem.

Em última análise:
Quem quer tratar-me pelo nome que me trate, quem quer me tratar por doutora que o faça.

Tozé Franco disse...

Chamo-me António e à conta dos Dr. já devolvi cartões de débito/crédito e outras coisas do género.
Chamo-me António e pronto.... (prontos, como dizem alguns doutores....)
Um abraço.

K@ disse...

Já me deixei um bocado disso. Já "corrigi" uma data de gente, com os mais diversos resultados.

Agora não tenho pachorra. Quer chamar de Doutor? Que chame. What do I care, quando o "1º" não é engenheiro mas tudo fez para que lhe chamassem isso? E, como ele, tantos e tantos outros que sempre foram "Doutores", sem nunca terem terminado o percurso académico sequer (uma das figuras mais emblemáticas de Coimbra, de resto, é o exemplo disso mesmo).

Não faço sequer um esforço, já. A não ser com alguém realmente próximo. Mas a malta mais chegada não me trata por Doutor. Mais depressa me chamam Palhaço...!

Unknown disse...

Concordo com k@ ... também prefiro que me chamem Palhaço!

Rafeiro Perfumado disse...

Eu continuo a corrigir. A última vez foi um estagiário, a quem disse muito calmamente "olha, voltas a chamar-me de Doutor e dou-te uma cabeçada"

The Star disse...

Isso dos títulos, também, me irrita profundamente. Bolas, faz-me sentir anos e anos mais velha do que sou na realidade.
Sim estudei, sim sou doutora, mas considero-me a mesma pessoa que era antes de tirar o curso.
Essa coisa de nos tratarem pelos títulos, é uma grande formalidade, só nos distancia do nosso interlocutor, pelo que odeio que me tratem por doutora. :s

Gata Verde disse...

Compreendo-te lindamente!
Na minha profissão passa-se o mesmo,tenho de carregar com o dito titulo a toda a hora...é bom tê-lo,mas também é muito bom ouvir o nosso nome...

Beijocas

Carracinha Linda! disse...

Estou como a Gata Verde. Ouve-se tantas vezes chamarem "dra." que sabe bem ouvir alguém tratar-nos pelo nome.

Bjs

Gata Verde disse...

Vim cá desejar-te um bom S.Martinho!
Não abuses da pinga...

Beijocas

Nilson Barcelli disse...

Somos, de facto, um país de doutores.
Também sou tratado pelo título rspectivo em todo o lado. E já nem resisto.

Mas, pensando bem, é uma opção que dá muito pouco trabalho, pois não obriga a fixar o nome da pessoa. Provavelmente, em Portugal, é por pura preguiça mental e não por outra razão qualquer que as pessoas são chamadas pelo título académico (que muitas vezes nem o são...). Parece-te bem... doutora? Pois, nem sei o teu nome, e GK faz-me lembrar o das metralhadoras...

Bfs, beijinhos

The Star disse...

Ó sra. doutora, então os nossos rapazes vêm cá actuar?
Fiquei eufórica quando soube!!! :D
Espero é que haja novidades dentro em breve. ;)

SoNosCredita disse...

de facto, é estranho...

a mim soa-me a falso, mas pra quê corrigir?
levam a mal, ainda por cima!

MH disse...

Uuuuuuuuuuuuuuuuui!!!
Andas a ler o pensamento do pessoal? Livra....

Una Amiga de Mi Amiga disse...

Achei o texto lindíssimo e muito verdadeiro.
Que sentimentos tao complicados que temos ás vezes.
bj